Hoje, dia 7 de abril, a sensação que eu tive ao chegar na escola em que trabalho às 7h da manhã era de que o dia seria longo. Ao longo da manhã, inúmeras confusões, brigas, tumultos me fizeram achar que os “demônios” estavam soltos. Mal sabia eu o que acontecia em outra escola, não muito longe dali, do outro lado da cidade. Durante o intervalo, escutei de uma funcionaria da escola que tinha acontecido um acidente em uma escola em Realengo. Mas só pude realmente me interar das noticias quando cheguei em casa.
Impossível descrever com palavras tudo que passou pela minha mente. Sensações confusas, tristeza, muita tristeza, cansaço, e também revolta, desilusão, desespero, solidão, agonia. Desconsolo, solidão. Eu sozinha acompanhava aos prantos o noticiário local que dava plantão sobre as ultimas informações ao vivo do lugar.
A primeira sensação era que poderia ter sido comigo. Poderia ter acontecido ainda agora, na escola em que eu estava. Poderia ter sido com o Andrei, um menino levado da 603 que quase tomou suspensão porque bateu num coleguinha da turma. Poderia ter sido com a 802, uma turma que eu gosto muito, cheia de alunos inteligentes e participativos, que provocam discussões e questionamentos interessantes.
Poderia ter acontecido com outros colegas meus, amigos da faculdade ou de profissão, que estão diariamente enfrentando a realidade escolar, mesmo com todas as dificuldades, salários baixos, escolas longes, falta de pilot pra escrever no quadro, falta de livro para os alunos, alunos desinteressados, analfabetos funcionais, agressivos e mal educados.
Não estou querendo colocar a culpa nos alunos não. Mas eles infelizmente estão chegando assim na escola. Não conhecem a palavra respeito. Conhecem muitos palavrões, xingamentos, adoram provocar uns aos outros, xingar a mãe e o pai alheio, ou falar que alguém falou sobre o pai de outro. Isso é tão comum que as vezes nem nos incomodamos mais com esses pequenos incidentes, esses “disse-me-disse” que perturbam a paz e provoca o que os especialistas chamam de bulling e a meu ver é fofoca mesmo, essa coisa de controlar a vida alheia e provocar até tirar o outro do sério.
Hoje, no terceiro tempo de aula, por volta das 9h, dois alunos começaram a se provocar no meio da aula. Eu pedi silencio, e continuei passando o dever no quadro. Quando me virei de costas, saíram se batendo com chutes e pontapés. O meu impulso foi ir para o meio da briga, (apesar de os especialistas sugerirem que os professores se afastem) e como eram pequenos, consegui segura-los. Assim que separei os dois, o Luiz Carlos, um garoto de 12 anos e 1,20m começou a implorar: “por favor professora, não me suspende, por favor, por favor!”, muito insistente e quase chorando, me prometendo que não ia mais fazer isso.
Nesse momento, a descontrolada era eu. Fiquei muito nervosa com a situação, não sabia o que fazer. Não podia deixar o acontecimento passar impunemente, mas também não podia deixar de me comover com aquele toco de gente implorando para não ser punido, muito mais vítima da violência do que o seu provocador. Segurei as lágrimas para não chorar ali, na frente da turma, e logo em seguida fui para o banheiro, os dois desceram para a orientação educacional.
Eu, que deveria ser o exemplo, a representante das boas ações, daquilo que é certo, eu que passei mais de 20 anos estudando, me preparando para o ofício, simplesmente não sabia o que fazer. Os anos da faculdade, a quantidade absurda de conteúdos relacionados a seres vivos, células, artrópodes, genética, vegetais, nada daquilo me era útil naquele momento. Mesmo as matérias da educação, como sociologia, psicologia, filosofia nem de longe tocaram em algum conteúdo que me ajudasse a tomar alguma providencia naquela situação. Até o mestrado em Ensino de Ciências e Saúde não me ajudou. Anos de estudo jogados no lixo, é esse meu pensamento. Mal sabia eu o que estava acontecendo em Realengo naquele mesmo momento, e que isso que eu estava passando “não era nada” em comparação com a escola Tasso de Silveira.
Lembrei depois também da prova do concurso, que só avaliou conhecimentos teóricos sobre essas matérias, e também dos exames médicos e psicológicos que tive que passar para assumir o cargo. Em nenhum desses momentos me informaram sobre como lidar com a violência ou me avaliar se eu estava preparada para agir quando acontecesse na minha frente. E, no entanto, como professora de ensino fundamental do estado do RJ posso relatar inúmeros casos de violência e agressão que ocorrem diariamente nos corredores e espaços mediadores da escola, dentro dela ou nas proximidades. Os palavrões, xingamentos, provocações, depredação do espaço e do material dos próprios alunos, são ocorrências diárias dos espaços escolares públicos do RJ. É impossível dizer exatamente quando foi que isso tudo começou para acabar com a tragédia de hoje. Mas também seria muito ingênuo acreditar que isso nunca aconteceria. É que a gente não gosta de alimentar os maus pensamentos, e fica acreditando que “isso não vai acontecer”, sem plantar as sementinhas no presente, no aqui agora. E aí o pensamento positivo não faz milagre sozinho. Enquanto a violência for ignorada e omitida nas escolas, ela se perpetuará e se dissipará em níveis que preferimos não imaginar. Como essa tragédia de hoje.
E nós até podemos refletir sobre as condições das escolas de hoje no Rio. Podemos e numerar os problemas. Falta infra-estrutura. As escolas não têm carteiras para todos os alunos, e muitas turmas são aglomeradas em salas muito cheias. Falta material, equipamentos e às vezes, falta até telha e chove na sala de aula, como presenciei uma vez, dando aula. Faltam professores e funcionários no quadro regular das escolas, sobrecarregando os que estão ali trabalhando com turmas superlotadas, ou acumulo de funções, impossibilitando um bom trabalho.
O nosso governo estadual tem a cara de pau de pagar R$ 680 líquidos de piso salarial para os professores. Só para comparar, qualquer atendente de telemarketing ganha mais do que isto, visto que recebe além de um salário mínimo, cerca de 530 reais, mais vale transporte e alimentação. Nós não recebemos esses auxílios.
Mas o mais grave não são esses dados. São as conseqüências para os alunos: baixo rendimento, indisciplina, má formação dos alunos e altos índices de evasão. As estatísticas apontam que cerca de 80% dos estudantes de classe baixa evade antes da conclusão do ensino fundamental. A avaliação do ensino vai de mal a pior, e índices como o SAEB apontam o RJ com um dos piores resultados no ranking nacional.
Mas o x da questão perpassa a questão estadual. Atualmente a escola não consegue formar ninguém, e mesmo quando forma, forma o que? Que tipo de pessoas são formadas quando tem um bom rendimento escolar? Será que a conclusão dos estudos conduz necessariamente a um futuro digno, a uma profissão, a inclusão social, a um emprego e um salário decente?
Provavelmente por isso, os alunos se inspiram em outros tipos de "heróis", que estão longe de serem realmente uma boa saída. Por exemplo, faz pouco tempo que aquele goleiro Bruno assassinou a namorada de uma forma brutal. Essa é uma tragédia anunciada que deve ser tida como o modelo daquilo que os nossos alunos/filhos admiram. O sonho de qualquer garoto em idade escolar é se tornar jogador de futebol e ganhar muito dinheiro (que nenhum professor pode sonhar em ter). O sonho das garotas, por sua vez, é se tornar modelo/atriz, e, na medida do possível, engravidar de alguém com condições financeiras para sustentá-la para o resto da vida. Duas pessoas jovens, que ao menos para os nossos padrões de “vida boa” teriam tudo para serem felizes, gastarem seus dinheiros e criar o seu filho simplesmente acabaram com suas vidas, mostrando que isso não é suficiente para o final feliz . Esse outro crime tão cruel, revela simplesmente para onde estamos encaminhando nossas crianças, uma vez que dentro da escola elas não encontram referencias felizes, ou modelos de vida que lhes inspirem (como os jogadores e modelos, que mesmo sem estudos, conseguem muito mais dinheiro do que nós, pais e educadores, meros mortais). Que tipo de sociedade estamos criando? Que modelos oferecemos para nossos filhos/alunos? Em quem eles podem se inspirar?
Em se tratando de vida acadêmica, desde o ensino fundamental até as pós-graduações, cada vez mais inclui-se conteúdos específicos, aumentando o currículo. As escolas e universidades são avaliadas como boas quando seus alunos passam por testes teóricos dificílimos, que avaliam a aquisição de conteúdos. Mas não se discute como se tratar de questões transdisciplinares, como respeito, cidadania, violência, trabalho. Não se discute a diferença da quantidade de horas de aula de cada disciplina, que gera um desequilíbrio, privilegiando algumas, como ciências, português e matemática, e negligenciando outras tão importantes quanto, como artes, sociologia, história e filosofia. Não se discute as práticas, as maneiras de fazer, os métodos de ensino e de avaliação. Apenas submete as pessoas a provas de raciocínio lógico e extrai-se um índice baseado na média de acertos. Todos os sentimentos, a auto estima, a violência, a tolerância, a amizade, o ambiente, os sentimentos de pertencimento, a organização coletiva, a mobilização e discussão de temas contemporâneos, tudo isso fica de fora. De fora das avaliações e de fora das preocupações.
Obviamente os governantes se envergonharam desse índices, que andam baixíssimos, e reunidos em seus gabinetes tomaram decisões, a meu ver, equivocadas, para "solucionar o problema", sem consultar ou compartilhar essa questão com os profissionais que pensam e atuam na educação. Para eles, “solucionar o problema” parece se restringir a melhorar os números das avaliações, e não refletir sobre o cotidiano escolar e a base estrutural do problema. São remediações que podem até forjar uma melhoria no algarismo do índice, mas que efetivamente não contribuem para a melhoria do ensino.
Agora que um crime hediondo como esse, o Massacre da escola Tasso de Silveira vêm a tona a única conseqüência desse descaso histórico com a educação: o assassinato de 12 crianças e mais 11 vitimas em atendimento, todos com menos de 14 anos.
Passado o choque provocado pela exploração do caso na mídia, é preciso que as pessoas despertem para a gravidade do caso, não apenas penalizando o autor dos disparos, mas sim alertando para o abandono que a educação sofre no Rio de Janeiro e em todo país. A culpa individual não soluciona em nada o problema, e seguir adiante sem pensar em todas as facetas da educação que levaram a este episódio é tapar o sol com a peneira e não observar com atenção a realidade em que vivemos.
A escola é o lugar do conhecimento, de transformação, de formação de cidadãos, de seres humanos. Todos passamos por ela, e esperamos que nossos filhos, netos, amigos ali se formem, para se tornarem professores, médicos, enfermeiros, advogados, enfim, profissionais e cidadãos que atuem na sociedade, pela sociedade.
Quem já ligou a televisão antes das 11h da manhã e acompanhou a programação infantil, deve perceber a quantidade de desenhos violentos que são oferecidos diariamente para os pequenos. Não se mostra referencias de paz, afeto, integridade, mas sim, de heróis mutantes, superdotados, ou simplesmente ricos, lutando contra monstros, pessoas, as vezes até países. Se formos falar dos filmes, então, mais uma enxurrada de violência gratuita e valorizada, sequencias de mais de 10 minutos de tiros e efeitos especiais que transmitem a mensagem: “olha como a violência é bela, que herói maravilhoso conseguiu matar um exercito inteiro sozinho,” e permanecemos em silencio com nossos olhos vidrados na tela esperando o final bem sucedido de um único personagem. Não quero dizer que a televisão seja exclusivamente culpada, mas que exerce uma influencia forte sobre os jovens, isso não pode ser ignorado. Quem nunca saiu excitado de uma sessão de cinema, com os “atos heróicos” vividos durante 1h30 de sangue e tiros? Quem nunca se imaginou atirando na fila do banco ou detonando bombas para encontrar uma vaga no estacionamento? A nossa cultura está cada vez mais vazia de bons exemplos e valores, e cada vez mais perdida na formação dos nossos sucessores, nossos filhos, netos, bisnetos.
Eu creio que isso é o pior: essa sensação de que não podemos fazer nada, de que somos poucos e mortais diante do "sistema", da organização geral e maior que rege todos os problemas. Temos que lutar contra o medo, a inação e o conformismo, e catalizar esse sentimento de frustração, revolta e inseguranças em ações para a melhoria das escolas de nosso país.
Vamos discutir a educação, vamos pedir às autoridades que compreendam que a educação é uma estrutura base crucial para o desenvolvimento da nação, que não pode ser remediada com medidas superficiais e de curto prazo. Precisamos de mais verbas para a educação, mais profissionais, mais infra-estrutura, mais livros, mais amor.
Vamos fazer com que essas crianças nao tenham morrido a toa, vamos impedir que mais inocentes sejam assassinados, nao apenas a tiros, mas diariamente massacrados pela organização social a que pertencemos.
Professora Maíra Baczinski
Niteroi, 7 de abril de 2011.
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Na Luta pela Escola Pública
Este blog pretende criar um espaço para informações e discussões sobre Escola Pública na Região dos Lagos, com destaque para o município de Cabo Frio.
O nome “Pó de Giz” é tomado, por empréstimo, do antigo time de futebol dos professores do Colégio Municipal Rui Barbosa. Um colégio reconhecido por sua luta pela educação pública de qualidade. Um lugar onde fervilha a discussão educacional, política e social. Colégio que contribui de maneira significativa na formação de seus alunos, lugar onde se trabalha com o sentido do coletivo.
O " Pó de Giz" é uma singela homenagem a essa escola que tem um "pequeno" espaço educacional, mas corajoso e enorme lugar de formação cidadã.
segunda-feira, 11 de abril de 2011
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