Na Luta pela Escola Pública

Este blog pretende criar um espaço para informações e discussões sobre Escola Pública na Região dos Lagos, com destaque para o município de Cabo Frio.

O nome “Pó de Giz” é tomado, por empréstimo, do antigo time de futebol dos professores do Colégio Municipal Rui Barbosa. Um colégio reconhecido por sua luta pela educação pública de qualidade. Um lugar onde fervilha a discussão educacional, política e social. Colégio que contribui de maneira significativa na formação de seus alunos, lugar onde se trabalha com o sentido do coletivo.

O " Pó de Giz" é uma singela homenagem a essa escola que tem um "pequeno" espaço educacional, mas corajoso e enorme lugar de formação cidadã.


quarta-feira, 25 de maio de 2011

Bolinhos de chuva e o Ensino Religioso


Stela Guedes Caputo(professora da Faculdade de Educação da UERJ)

Quando eu era criança uma das coisas que mais gostava de fazer era observar minha avó na cozinha. Até hoje, este é um dos lugares preferidos de minhas lembranças. Eu chegava da escola, almoçava, ajudava com a louça e sentava na enorme bancada de mármore da pia para vê-la preparar alguma delícia para o lanche das tardes. Ali eu ouvia da família que ficara na Itália, de cinema, de canções e histórias que ela gostava. Certa tarde, a guloseima da vez eram seus famosos bolinhos de chuva que devorávamos com café bem quentinho. Como sempre, dona Maria misturava o leite morno à farinha e eu, que já reivindicava há tempos ajudar, pedi para quebrar os ovos. Foi quando ela me disse: “Isso não é assim não filhinha! Isso tem C I Ê N C I A!” Dali para frente não mudaria. Toda vez que minha avó queria dizer que algo pedia uma metodologia mais complexa e algum experimento prático cujo resultado exigisse comprovação, ela impostaria a voz e repetiria a frase “Isso tem C I Ê N C I A”, com as sílabas bem separadas.

Naquela mesma bancada, minha avó que era muito católica, já tinha me dito havia algum tempo que, para acreditar que um dia eu conheceria sua mãe, minha bisavó, no céu, era preciso ter FÉ. “Tem coisa filhinha, que só tendo muita FÉ!”. Já FÉ, ela pronunciava num monossílabo forte, definitivo e encerrado. Então, foi na cozinha de minha avó que comecei a aprender que havia campos diferentes de saber e modos diferentes de perceber, conhecer e interpretar a vida. Alguns diriam respeito à ciência, outros, à fé. Aos poucos as coisas que precisavam ficar mais claras sobre a ciência ficaram mais claras na escola, com tudo o que o mundo da escola trazia: professores, professoras, colegas, livros, cinema. E, as que precisavam ficar mais claras sobre a fé ficaram mais claras na igreja, que eu também freqüentava desde pequena, e com tudo o que o mundo da Igreja significava: padres, freiras, colegas, catequese, missas, livros, grupo jovem, cinema.

Alguns amigos e amigas trilharam semelhante caminho e, em algum ponto, tomamos diferentes direções. No meu caso, deixei de ter fé e abandonei a religião. Julguei que, por mais que a ciência e os cientistas não tivessem e não tenham todas as respostas para todas as questões sobre a vida e o universo, não significava e nem significa que existisse uma força divina e, portanto, sobrenatural por traz dessas lacunas. Mesmo que não venhamos a conhecer tudo em nossa limitada e curta história da humanidade. Outros seguem acreditando e conciliando ciência e fé num equilíbrio que confere sentido à suas vidas. A minha, que, para mim, não concilia, também é plena de sentido. Olhando para trás percebo que um elemento foi fundamental nas minhas opções e na de meus amigos e amigas: a escola pública em que estudei nos garantiu autonomia e liberdade de pensamento. Não havia disciplina de Ensino Religioso nela.

Para a minha avó, a ciência organizava uma certa maneira de pensar e fazer certas coisas que ia garantir, numa significativa quantidade de vezes, que, misturados os ingredientes tais e de uma maneira específica, seus bolinhos de chuva saíssem daquela forma e não de outra. É claro que, como toda ciência séria, é preciso considerar as variáveis e as famosas circunstâncias. Os modos como farinhas são produzidas, vendidas e armazenadas, o estado dos ovos, as condições de trabalho e mesmo as motivações e o estado de espírito da minha avó. Isso serve tanto para os bolinhos de chuva, como para os cientistas e a clonagem, a engenharia genética, as investigações sobre o universo. Já o campo da fé organizaria e daria soluções para outras coisas importantes para ela. Por exemplo, a saudade que ela sentia de sua mãe.

O problema é quando, na escola, se mistura uma coisa e outra sob o mesmo estatuto. É misturar numa aula de ciências, bolinhos de chuva e vida após a morte. Para a primeira, ainda que com sabores ou recheios diferentes, haverá possibilidades de verificar a eficácia ou não de sua produção. Para a segunda, 50 alunos darão 158 respostas diferentes. Definitivamente, a sala de aula não deve ser o espaço de legitimação de nenhuma delas e, para mim, por dois motivos. Primeiro, porque nenhuma das 158 respostas se comprova, a não ser no dentro da fé de cada um. Segundo, porque empoderando e legitimando uma, ou as semelhantes em aspectos fundamentais, outras tantas seriam excluídas e desempoderadas. E não adianta dizer que a disciplina de Ensino Religioso não vai legitimar nenhuma resposta. Se não fosse para cumprir esse objetivo não haveria tanto empenho em difundi-la.

Por todas essas coisas considerei muito acertada a decisão contrária à implantação do Ensino Religioso nas escolas do município tomada unanimemente pelo Conselho Municipal do Rio de Janeiro através do parecer 04/2011, publicado no Diário Oficial de 24 de fevereiro. O corajoso documento defende o caráter laico da escola pública e afirma compreender que o Ensino Religioso não se constitui em uma área de conhecimento específica que deva ser tratada nos moldes disciplinares. Questiona, ainda, que se, como prescreve a lei, o Ensino Religioso é de matrícula facultativa ao aluno, como pode fazer parte dos horários normais das escolas públicas de Ensino Fundamental? E como computar a carga horária dos alunos que optarem por não freqüentá-lo? Pergunta com propriedade, como pensar o estabelecimento de conteúdos que respeitem a diversidade cultural e religiosa, ouvindo entidades civis constituídas pelas diferentes denominações religiosas, sem que isso represente qualquer forma de proselitismo? São questões extremamente pertinentes e para as quais já temos respostas se olharmos o que acontece com o Ensino Religioso no Estado. As entidades religiosas não são apenas “ouvidas”. Elas indicam seus representantes para as coordenações de Ensino Religioso na Secretaria de Educação. E é preciso que se diga que só os credos católicos e evangélicos possuem representações. As entidades também têm autonomia para definirem o conteúdo da disciplina. Basta ver a coleção de livros didáticos católicos lançada pela cúria diocesana em 2007 para o Ensino Religioso católico. São quatro volumes luxuosamente confeccionados, ilustrados pelo cartunista Ziraldo. Uma coleção de conteúdo conservador, que discrimina religiões afro-descendentes e faz propaganda política inclusive, com orientação para o voto partidário. Tudo isso dentro da escola pública.

Ocorre que o prefeito Eduardo Paes já estava decidido a implantar o Ensino Religioso nas escolas do município. Tanto é que ignorou o parecer do Conselho Municipal e encaminhou o Projeto de Lei 862 que cria 600 vagas municipais para esta disciplina. O texto pede urgência na aprovação e a segunda votação será no dia 23/05/2011 na Câmara de Vereadores do Rio. Estes novos professores se somarão aos 500 aprovados em concurso para o Estado em 2004 e aos 364 que já lecionavam esta disciplina antes do concurso, sendo que o Estado prepara novo edital para mais 300 professores.

Tenho realizado entrevistas com professores de Ensino Religioso e elas revelam o contrário do que determina a LDB. Ou seja: não pode haver proselitismo, conversão. Todo mundo sabe que não é isso o que acontece. A bíblia é usada largamente, a Campanha da Fraternidade está dentro das escolas, o Pai-Nosso é rezado em muitas delas, professores apontam alunos e alunas de religiões afro-descendentes como filhos do Diabo.

Participei do VII Fórum de Ensino Religioso, no dia 1 de março deste ano. Seu tema foi: “Ensino Religioso: entrelaçando saberes e vidas/fraternidade e a vida no planeta”. Os 100 professores que estiveram presentes foram recebidos ao som do CD da Campanha da Fraternidade e com uma pastinha contendo um certificado, um cronograma de atividades e vários folhetos com propaganda de editoras católicas. No cronograma entre os objetivos lemos que o VII Fórum pretende “apresentar a Campanha da Fraternidade/2011 numa postura de parceria com a Igreja Católica, procurando dar subsídios para seu desenvolvimento na Comunidade Escolar e nas aulas de Ensino Religioso, com todos os credos”. O cronograma também prevê a comemoração do Dia de c Ação de Graças, em 25 de novembro, com missa na Igreja da Candelária e com participação de alunos das escolas públicas e particulares. Não há dúvidas sobre o que já acontece no Estado e sobre o que vai acontecer no município. Assim como não havia dúvidas que, apesar do precioso parecer do Conselho Municipal de Educação, Eduardo Paes cumpriria a promessa do Ensino Religioso que fez ao arcebispo do Rio, D.Eusébio Scheid, durante a campanha eleitoral e pela qual (entre outras) recebeu amplo apoio da Igreja Católica. Fica também a pergunta: qual o papel dos conselhos para a administração pública?

Quando dizemos que a escola não é lugar de religião significa que as diferentes religiões estão proibidas de circularem na escola? Não, pelo contrário. Tudo circula na escola, porque a escola é espaço de circularidades, verdadeiro e infinito redemoinho de tensões. Para professores e professoras existe, portanto, mais um, entre muitos desafios: olhar a circularidade e antes de qualquer coisa, reconhecê-la. Depois, penetrá-la, e equilibrar-se nela, e andar com ela, e alegrar-se com ela, e estimulá-la e beneficiar-se dela, e aprender com ela e ensinar com ela. As diferentes culturas de alunos e alunas, professores e professoras, incluindo suas religiosidades ou nenhuma religiosidade está nessa circularidade. Engessar o que deve circular livremente na escola como potências de aprendizagens é ruim. É tentar caçar o redemoinho e domá-lo, coisa que me parece impossível. A disciplina de Ensino Religioso quer isso: caçar redemoinhos e engessá-los. Diz que não catequiza e não discrimina. Salvo alguma exceção, não é verdade. E se a exceção como alternativa criadora é importante, ela é o que é: exceção, não regra. E a regra, neste caso estabelecida, é o que multiplica sofrimentos e humilhações de milhares de crianças de candomblé e umbanda, as mais atingidas pela discriminação nas escolas.

Concordando com o físico brasileiro Marcelo Gleiser, também não acredito que a função da ciência deva ser tirar Deus das pessoas, mas “oferecer uma descrição do mundo natural cada vez mais completa, baseada em experimentos e observações que podem ser repetidos ou ao menos contrastados por vários grupos”. No mesmo sentido, Gleiser lembra que Galileu criticou os teólogos católicos, dizendo que a função da bíblia não é explicar os movimentos dos planetas e sim como obter a salvação eterna. ("Não é explicar como os céus vão, mas como se vai para o Céu.") Para o físico brasileiro, muitos cientistas acreditam que o estudo da ciência serve para comprovar a beleza da criação, mas a religião não pode pretender ocupar o lugar da ciência.

O obscurantista não vê isso. Ele nega a beleza da ciência e a vê como inimiga. O obscurantista não ouve nada além de sua própria voz e verdade. Sabe o que é pior? O obscurantista não está só na disciplina de Ensino Religioso. Ele tem nela mais um instrumento. Mas o obscurantista pode lecionar qualquer disciplina. Na próxima semana os obscurantistas marcarão mais um ponto quando a Câmara Municipal aprovar o Ensino Religioso. Digo que vai aprovar não por ser pessimista, mas por ser realista. Os setores laicos estão muito pouco organizados para conseguirem defender o Estado e as escolas públicas dos avanços conservadores, pelo menos por agora, o que é uma lástima.

E eu, que não mais acredito em um plano divino para o progresso da humanidade e sim que a história se transforma em função dos conflitos econômicos e sociais (Marx, 2007), enquanto torço para que essa desorganização dos setores laicos seja temporária, olho para o céu e suas incontáveis estrelas. Ouvindo os candomblecistas, aprendo com eles que Olorum criou tudo isso. Para os católicos, o Deus dos católicos. Já para alguns cientistas, o universo é tão perfeito que não há nada que um Deus possa fazer e outros dirão que justamente essa perfeição revela a existência de Deus. De minha parte, só acho um privilégio imenso poder apreciar essa beleza infinita. Seja quem ou o que for que a tenha criado ou que, como penso, ela simplesmente tenha surgido por pura sorte nossa.

Referências bibliográficas
ENGELS, Friedrich e MARX, Karl, A ideologia alemã. São Paulo, Boitempo: 2007.
GLEISER, Marcelo, Conciliando ciência e religião, Caderno Mais, Folha de São Paulo, 25 de junho de 2006.

Um comentário:

  1. Concursados de Belford Roxo e colegas professores,

    temos conversado no correr deste mês sobre a situação de nossa convocação já que Belford Roxo não deu continuidade à chamada do Cadastro Reserva, optando por abrir Contratação Temporária. A Companheira Cris e a Maria José, que é do SEPE de Belford Roxo, agendaram nosso encontro para o sábado 28/05/11 a partir das 9h durante o congresso do SEPE, na Tijuca – Clube Municipal. Estarei na reunião para, em conjunto e em comum acordo, decidirmos os passos seguintes. Acredito que juntos poderemos tomar algumas atitude efetivas para alcançar nossos objetivos. A vaga é nossa, mas infelizmente ainda temos que lutar para conquistar. Por outro lado reclamar e não agir não conduz a lugar nenhum.

    Vou ficar na entrada principal aguardando.

    Cordiais saudações!

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